Raro são aqueles que não conhecem o infortúnio da "Escrava Isaura". Bela & Desejada por muitos, apresentava um grande paradoxo com seus pares: tinha pele branca. Pois, sendo filha de uma mulata e de um homem branco, acabara suplantando o genótipo dos traços circassianos. Daí seu infortúnio: ser escrava branca, quando a única condição permitida por lei à servidão compulsória e não reconhecimento de seus direitos à personalidade era ser justamente "negro". Pelo visto a antinomia "filho de escravo, escravo é" foi fatalmente superior ao critério hierárquico "só negros podem ser escravos". Dessa forma, por ser uma exceção ao princípio permissivo da escravidão racial, Isaura é uma escrava branca.
Assim, está à mercê de Leôncio, um fazendeiro autoritário que não admite ser contrariado e quer possuí-la a qualquer custo, mesmo sendo casado. Para evitar o iminente defloramento, Isaura se vê obrigada a fugir e o resto é novela. Uma novela boa por sinal.
Gosto da essência deste livro, pois talvez seja a primeira quebra paradigmática racialista do Brasil. Caso Isaura fosse negra, inevitavelmente os leitores de Bernardo Guimarães não compadeceriam de sua personagem. Ao mesmo tempo, o argumento do livro, propositalmente, quebra a perversa lógica que sustentaria a ratio de escravizar e/ou comprar escravos, que é: não há lógica para escravizar.
Primeiramente, analisando cientificamente, "raça" é um conceito usado vulgarmente para categorizar uma espécie biológica. Espécie é a última das estruturas hierárquicas da classificação científica usada em biologia, procedente do Gênero, que subsome na Família, por aí em diante. Portanto, não poderíamos discriminarmos por raça, pois somos todos Homo sapiens sapiens, com distintos traços, todavia, da mesma espécie. A única vez, em toda história da humanidade em que poderíamos ter-nos disjungido, seria à época em que o Homo sapiens neanderthalensis dividia a terra conosco. Infelizmente neandertalianos foram extintos, encerrando de vez a nossa "racilização". Destarte, é correta a afirmação: "quem tem raça é cachorro" e falaciosa afirmação: "pertenço a tal raça". Em suma, somos todos Homo sapiens sapiens, apesar de alguns não aparentarem carregar o segundo 'sapiens'.
Demolido o argumento racial, a pintura a seguir apresentada expõe uma outra contradição:
Não é preciso apresentar traços fenótipos diferentes para se escravizar. É possível subjugar o outro por qualquer motivo: religião, ancestralidade, naturalidade, língua... ou até mesmo os próprios pares. Isaura poderia ser escrava em qualquer sociedade, em qualquer época. Não é preciso traçar distinções. Por exemplo, a todo tempo nos deparamos no noticiário com reportagens de que certos grupos latinoamericanos exploram seus iguais fábricas clandestinas de tecelagens nos centros urbanos. Famílias inteiras em cortiços trabalhando todos os dias sem descanso. Ou, na mesma situação, os asiáticos, em similar modus operandi. Eu poderia citar: bolivianos! chineses! Nos modelos supraoferecidos, até mesmo brasileiros. Porém, são todos Homo sapiens sapiens submetidos por outros Homo sapiens sapiens, independentemente de peculiaridades externas ou internas diversas, que poderiam ser classificados de outras formas, exceto de "raça".
Daí a importância da leitura e reflexão de "A Escrava Isaura", pois, somente conhecendo o passado se compreenderá o presente, evitando mais erros no futuro.