“
Interpretatio facienda contra eum qui clarius loqui potuisset ac debuisset” Porventura você já atirou a primeira pedra?
Já contestou um axioma?
Mentiu para contar a verdade?
Bem, eu já.
Uma vez Jimi Hendrix cantou: “are you experienced? / Have you ever been experienced? / Well, I have”.
SARTRE, Jean-Paul (1905-1980). As Moscas. ed. Nova Fronteira / 2005.
Sobre este livro, é notório que Sartre o escrevera concomitantemente à sua principal obra filosófica -O Ser & o Nada-, ambos de 1943. Seu pensamento foi muito difundido à época devido à moda existencialista que seguiu-se aos seus trabalhos publicados, acrescido ao fato de ter-se tornado também um famoso romancista e teatrólogo. Sobre Sartre, basta uma rápida pesquisa na Wikipedia (www.wikipedia.org) para situar-se no contexto deste livro.
Ainda no início da 2ª Guerra Mundial, mais propriamente em 1940, a França é invadida pela Alemanha Nazista. Ainda traumatizada pelos estragos da 1ª Guerra, assina um armistício com seu algoz, buscando um “mal-menor” e evitando assim a destruição imediata do país. Dessa forma, a França é imediatamente divida em duas, sendo instalado em Vichy a sua nova capital, passando-se o comando para o antigo herói da 1ª Guerra, o General Phillipe Pétian.
Buscando a reconstrução nacional, a França agora não passava de uma “colônia” que servia aos interesses de Hitler e seus asseclas. Em frangalhos, não restava ao estado gaulês qualquer saída a não ser a auto-penitência, colaboração e degradante subordinação, pois ao menor sinal de resistência seriam rapidamente dizimados pelo Estado Alemão.
Passados três anos sob ocupação alemã, o colaboracionismo de Vichy não presentava sinais de recompensa pela auto-humilhação francesa perante o 3º Reich, pior, o estado nazista parecia regozijar ainda mais com a penúria de seus cativos. O sadismo alemão já há muito superava o masoquismo francês, sugavam até não poder mais o país, saqueando, torturando e executando o que e quem bem quisessem.
E é sobre essa plataforma histórica que se localiza “As Moscas”. No auge da submissão do governo Vichy, Sartre apropria-se da obra do poeta trágico grego Ésquilo (Agamemnon), para rescrevê-lo à sua maneira. A história original conta que depois de dez anos, Agamenon volta da Guerra de Tróia vitorioso, trazendo ricos despojos, a grande motivação da campanha. Clitemnestra prepara recepção calorosa para seu marido, mas como já havia planejado com seu amante Egisto, mata Agamemnon e a vidente Cassandra, vinda de Tróia, vingando a filha Ifigênia, sacrificada pela vitória na guerra.
Na obra em tela, Orestes voltando para casa junto com seu tutor, vê sua cidade natal recoberta de moscas, simbolizando a culpa pela aquiescência em relação ao assassinato de seu pai. O povo é manipulado por Egisto e Zeus, numa farsa religiosa que envolve "a volta dos mortos.' A população ao invés de erguer-se contra seus líderes, prefere expiar seus pecados publicamente por não terem avisado seu falecido rei da traição da rainha. Zeus para garantir a catálise da culpa, investe contra a cidade um enxame de moscas sedentas de sangue, que torturam os habitantes tanto física quanto psicologicamente.
Na caricatura sartriana, os habitantes de Argos são os franceses; Egisto, o amante da rainha, homicida do rei e consecutivamente o usurpador do trono é a Alemanha Nazista; Clitemnestra, a rainha, a traidora colaboracionista e partícipe da farsa dos mortos é a França de Vichy, consecutivamente Pétain; Júpiter, é a representação religiosa, o braço católico que deu suporte ao governo entreguista; Orestes, filho que voltou para vingar o pai, é a resistência e Electra, a filha de Agamemnon que vive no palácio e sonha com a desforra do pai, aqui poderia encaixar-se como aqueles que sonhavam com a luta, mas pela covardia, nada faziam.
A peça “As Moscas”, em resumo, exortava à luta violenta contra os usurpadores e contra o conformismo de parte da população.
Este livro/teatro é, outrossim, uma ponte para seu tratado mais importante: O Ser & o Nada, que sintetizava o existencialismo sartriano, delineando as influências de Husserl, Heidegger, Jaspers e Scheler e ainda pela longa manus de Kierkegaard. Portanto, seu existencialismo, na concepção filosófica, é uma moral da ação porque considera que a única coisa que define o homem é seu ato. Ato livre por excelência, mesmo que o homem sempre esteja situado em determinado tempo ou lugar, não importando que as circunstâncias fazem dele, mas sim o que ele faz do que fizeram dele.
Aqui, Orestes, simbolizando o “resistente”, o homem comum que ‘se escolhe herói’, desafiando os vínculos mais ‘sacrossantos’ com a ordem estabelecida, sendo impulsionado à ação por um inconformismo juvenil a aprender com sua irmã Electra, embora ele própria esteja ainda presa nas armadilhas de um sentimento apenas passivo, de ódio estéril e vulnerável (texto apresentação de Caio Liudvik), servem de alicerce para exemplificar sua teoria. Em dado momento, Zeus confessa a Egisto, o usurpador:
“...O doloroso segredo dos deuses e dos reis: é que os homens são livres...”
“...uma vez que a liberdade explodiu na alma de um homem, os deuses nada podem contra ele...”
Essa é a chave do existencialismo, bem como é a chave do livro. Infelizmente não posso ir além, pois se fosse estragaria o gran finale. Deixo um pouco de lado o conteúdo da mise-en-scène, recepção e críticas, pois isso tudo você poderá encontrar na apresentação do livro.
Por fim e sem mais delongas, você DEVE ler esse livro, tanto pela história empolgante, engraçada, trágica, como também pelo enredo e final espetaculares. Soma-se ainda o fato de tratar-se de um livro sobre todos nós. Sobre o destino das nossas escolhas, sobre essas escolhas que fazemos como pessoas livres e sem a intervenção de deuses ou de presidentes.
A leitura é leve (e até um pouco rápida demais), contrastando com o prolixo O Ser & O Nada. Mas se mesmo assim palavras como: existencialismo e ontologia fenomenológica te assustem um pouco, fique tranqüilo, esta peça foi justamente elaborada para àqueles que não querem enveredar por um caminho excessivamente teórico-filosófico-enfadonho (não são nem 100 páginas e ainda por cima está no formato de diálogos. [a tradução é excelente!]). Na verdade, você vai se divertir muito.
BOA LEITURA
PS: E para o bem ou para o mal, é preciso saber estar só, les chemins de la liberté germinarão em ti após esta leitura, pois este livro/peça aproveita uma época apolítica da vida de Sartre e por muitos é considerado seu ápice criativo.
PPS: Embora os “esquerdóides” tentem ao máximo apagar Albert Camus da biografia de Sartre & Beauvoir, é impossível deixar de citá-lo. Pois a amizade Camus & Sartre teve o seu pontapé bem aqui, no ensaio para a peça “Les Mouches”, depois disso eles nunca mais foram os mesmos.
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Eu experimentei e você?