Muitos, assim como eu (que já foram geração emetevê), somente conheceram aquele Lemonheads que tocava a já manjadíssima Mrs. Robinson (do Paul Simon) ou "Into Your Arms" (Robyn St. Clare) lá pelos idos de 92, 93 e depois pra nunca mais se ouvir falar.
Bem, quando o Evan Dando passou pelo Brasil, eu estava assistindo o show do magnífico Pixies em Curitiba, por isso não deu tempo de vê-lo em São Paulo. Mas pelo que me falaram, não deixou saudade.
Um belo dia, resolvi adquirir aquela coletânea dos cabeças de limão (The Best of the Lemonheads: The Atlantic Years, 1998) e gostei muito do material off-mtv e off-radio. Assim, comecei a torrar uma grana com o restante da discografia.
Pesquisando pela internet (mais precisamente, na quadriloqüente[!] Wikipédia), descobri 3 discos que me faltavam para magnanimar-me indie: Hate Your Friends (87), Creator (88) & Lick (89).
Mas havia algo de estranho(!?), Lovey (90) diferentemente dos outros, já apresentava uma sonoridade um tanto anormal. A única cabeça conhecida fora o próprio ED, era o grande baterista David Ryan. Do resto, não conhecia ninguém!? Aliás, meu primeiro álbum, não foi a coletânea e, sim o “paralelo” Around. O Lovey continha algumas músicas que eu curtia no Around, mas só aquelas não tocadas ao vivo possuíam a tal ‘pegada’ anormal. Li'l Seed e (The) Door contiam frituras de guitarra muito distante do mundinho punk dos independentes. Aí eu fiquei conhecendo quem era T. Corey Brennan.
Mas tudo bem, não é deste disco que venho falar, voltemos aos três iniciais:
A novidade para mim, foi que, ao contrário do unilateralismo da figura do ED que eu estava acostumado, uma nova voz apareceu nestes álbuns. Alguém que até então eu ignorava. Descobri que o Lemonheads havia nascido dual, muito punk e extremamente mais criativo do que eu podia imaginar.
O Lemonheads nasceu em 1986 como The Whelps, formado por dois colegas de uma escola secundária em Boston (MA). O primeiro homem era o já conhecido Evan Dando, mas a novidade ficava pelo fato de haver também um segundo primeiro-homem: Ben Deily.
O engraçado disso tudo está no fato de que BD não era um bom cantor (hoje em dia já está melhor), não era o 2º guitarrista (até porque era o baterista) e não era o principal compositor. Mas, mesmo assim, havia algo de mágico no ar.
Comecei ouvindo o primeiro disco (Hate Your Friends), que nesta edição já incluía o primeiro EP (Laughing All the Way to the Cleaners, 86), com o baixista Jesse Peretz, que mais tarde se tornaria cineasta e diretor de vídeo-clipes (muitos inclusive do Foo Fighters). Algumas faixas ainda traziam o baterista Doug Trachten, mas este sumiu pela história.
Tudo o que eu posso dizer é que HYF é um prato-cheio para aqueles que cresceram ouvindo Bad Religion, Bad Brains, Ramones, Sex Pistols etc. O CD é mais puro e doce caldo punk e nada mais. Pois não espere nada com mais de 3 (3 minutos, 3 acordes, 3 refrões). ED e BD revezam nas composições, nos vocais, na bateria também. Tudo bem tosco e muito maravilhoso. Destaques para Glad I Don’t Know, Rabbit, Second Chance, Hate Your Friends, Ever e Sad Girl.
Porém, saindo da lógica natural, pulei o 2º CD (Creator) e fui direto pro 3º (Lick).
Lick é o que há de mais bizarro em toda a discografia. Teoricamente, o disco saiu à fórceps, mas saiu muito bom. São 5 inéditas (3 do ED e 2 do BD), 2 regravações e 2 takes do primeiro disco e um cover (Luka da Suzanne Vega).
O casting é quase o mesmo do HYF, com a diferença da entrada do Corey Loog Brennan na guitarra, fazendo as frituras à rock farofa e cantando em italiano (Cazzo di Ferro).
O saldo é positivo, mas depois desse Frankenstein, BD retirou-se da banda, prometendo processar o ED caso este cantasse alguma de suas músicas e descrevendo toda essa fase numa canção vingança (Blockout, cantada pelos Pods). PS: hoje em dia já está tudo bem entre eles. Destaques para: Mallo Cup, A Circle of One, Anyway & Luka.
Por último, pus Creator para tocar... Realmente esperava algo como uma continuação de HYF ou coisa que o valha, não sabia que daquele momento em diante, que este seria um dos meus CDs favoritos...
O Album
À primeira audição, sentia que este disco era especial. Como já havia dito, em tese, não haviam elementos extrínsecos que me levariam a acreditar que este era um dos melhores CDs da história. A capa não dizia nada, é bem sem graça. Na contra-capa a formação do primeiro disco, mas pelo menos com um baterista fixo (John Strohm, que tocava guitarra no Blake Babies e em outras da mesma cena).
Ao colocar o cd pra tocar no carro (comprei todos na galeria do rock pagando preços astronômicos) e o som da chuva e sinos entoavam o que eu estava para ouvir:
A primeira faixa, Burying Ground, é cantada pelo BD, bem como é também uma de suas composições. Na abertura é já possível reconhecer as sutilezas das músicas. Não mais o ritmo frenético do HYF, mas uma forma diferente de tocar, abafando as cordas, sussurrando as vozes e alterando a velocidade da canção várias vezes. É até um tanto sofisticado demais para uma banda até então “punk”. Mesmo a letra é diferente e aqui mais especificadamente encontramos uma estrofe de Emily Dickinson: "This is the Hour of Lead -- Remembered, if outlived, As Freezing persons, recollect the Snow -- First -- Chill -- then Stupor -- then the letting go --".
Como um degustador, este primeiro prato era o suficiente para minha inteira satisfação, mas havia mais...
Sunday é a segunda música do BD em Creator. Já mais no espírito pesado, encontramos aqui (bem de fundo, é claro) teclados (!!!)
Assim, quase sem pausa para respirar nos deparamos com a primeira canção do ED no disco (Clang, Bang, Clang, mais tarde regravada em Lovey com o nome Left For Dead). O ponto forte da música é a versatilidade e a rapidez do John Strohm como baterista de um disco só. É impressionante o domínio do instrumento que até então não era sua especialidade. A forma de utilizar os pratos ao invés da caixa destoa muito de toda a discografia do Lemonheads. É uma bela música para abrir um show.
Seguindo a porradaria, Out, pesada mas com uma pegada mais lenta, é a segunda música do ED no disco. Um excerto: “Digging deeper in the sand / Now the water comes up / Cut my finger on the years oh, years oh What can you do? / I'll remember you / He waits for you behind the years oh, years oh Let it go” e podemos nos deparar com um certo lirismo, um subjetivismo poético que começava a germinar aqui mas adquirirá a maturidade plena em It's A Shame About Ray (1992).
A quinta faixa (Your home is where you’re happy) é uma surpresa! Trata-se de uma balada escrita pelo Charles Manson (é, aquele da família insana que matou a atriz Sharon Tate). Parece que nesta época ED viajava pelo campo do satanismo e cultuava o tal Manson (que também foi regravado pelo Guns n’ Roses etc). A priori é uma baladinha bem inocente: Your home is where you’re happy / It’s not where you’re not free / Your home is where you can be what you are / As you were just born to be. Perfeito para um lobo em pele de cordeiro.
Falling, do BD, talvez seja a única música que realmente demonstre estarem ele e ED no mesmo disco. É aparente que estão sendo tocadas duas guitarras, pois até então pareciam duas bandas diferentes tocando no mesmo cd. Falling é rápida, suja e eficiente.
Em seguida já entra Die Right Now, a última música do ED no disco e talvez a sua melhor contribuição até aqui. Mais violenta do que média das suas composições, aqui o próprio não para de urrar Time!!! no refrão enquanto rola uma locução de fundo e depois um solo maravilhoso. Ficou pra história.
E dessa forma, na oitava faixa, o BD retorna quebrando o andamento distorcido de Creator com Two weeks in another town, cuja letra tem tom mais bucólico (e talvez seja o divisor de águas do álbum). A partir daqui quase todo o disco é seu, e foi aí que me surpreendi, pois este era o único cd em toda carreira do Lemonheads que não foi inteiramente escrito pelo Evan Dando, assim como não é ele quem conduz a batuta. É maravilhoso!
A nona faixa deveria ser a regravação de Luka (que posteriormente aparecerá em Lick); mas ao invés disso, a banda resolveu colocar um(a) cover do Kiss, Plaster Caster, que é bem engraçadinha e quebra toda a tensão que as músicas carregam. Cynthia Plaster Caster foi uma famosa groupie que fazia moldes de gesso dos pênis de suas conquistas (Morrisson, Hendrix, Gene Simmons [daí a “homenagem”]).
A décima canção Come to The Window traz um novo elemento que se tornaria o principal instrumento do grupo a partir de 1992: o violão. Não que a música seja uma balada, longe disso! Ainda há a crueza e a distorção das guitarras, todavia, tudo fica mais encorpado, mais melódico. Come to the Window é o exórdio do futuro som dos cabeças de limão iriam começar a fazer.
Em seguida, uma locução do filme Blade Runner anuncia a próxima faixa Take Her Down, que recupera a pegada enérgica das duas primeiras canções. A letra, como toda boa letra, deve ser tão pesada quanto sua música: Collector knows, forever lie /Acid in your throat, don't cry. Da mesma forma é mais elevada do que a media: “Fire on the ocean go / Sun is sinking far below / Glowing cold but always gone / Numb and flashing off and on / Dying in your heart…”. Nada como letristas literalmente “letrados”. Ben Deily é graduado em literatura na Universidade de Harvard desde 1994.
Postcard, a penúltima, à primeira vista, não morri de amores por ela. Parece-me que nem o Jesse Peretz gostou à época. Posteriori, comecei a apreciá-la e entender sua mensagem. Aqui sim, uma balada só ao violão e levemente teclados ao fundo. Hodiernamente esta letra seria considerada “Emo”.
E por fim, para encerrar este majestoso disco, a maravilhosa Live Without. A voz do BD não permite maiores escândalos, mas, mesmo assim, é possível ver que ele dá o sangue neste música. E é isto que faz a diferença, o sangue dado neste disco que quase matou a banda na turnê para divulgá-lo. Live Without é também a última faceta do JS como baterista e outrossim, mais uma vez abusa dos pratos no acompanhamento. A melodia segue a mesma orientação do lado B do LP, mas o diferencial aqui é o frescor, a ardência, a juventude, a garra que os 4 cavaleiros depositaram em Creator. Realmente a emoção e a qualidade das canções é ímpar, sendo Live without seu posfácio.
Dentro do encarte há uma foto da banda, na frente de uma tumba onde há o nome dos integrantes e o nome do disco Creator como epitáfio. Essa fotografia não carece de extensa interpretação, até porque é explicável de per si. O “Lemonheads” morreu neste disco, para posteriormente nascer como o “The Lemonheads”. À primeira vista não existe diferença alguma, mas há!
Posso até estar sendo redundante, mas o que há de mais belo em Creator é a sua força ingênua e juvenil. Uma banda que ainda não precisava cair nas armadilhas do mercado. Não precisava se dobrar para gravadoras ou fãs, tanto é que Luka sugerida pelo empresário foi recusada e substituída por Plaster Caster. Aqui somente entrou aquilo que a banda queria tocar e da forma como gostaria de tocar. Ainda assim, também é primoroso porque é disfuncional. São dois conjuntos no mesmo disco (um Split-cd), são ‘Lemonheads’ e ‘The Lemonheads’ tentando ocupar no mesmo espaço. Com o tempo o segundo engoliu o primeiro, mas para mim o primeiro deixou mais saudade. O segundo está por aí, periclitando, lançando um disco de covers, cometendo auto-plágios. Não que eu não tenha gostado dos últimos lançamentos, contudo tenho a sensação do “já ouvi isso antes”, como se fosse comida requentada.
Numa parte de Live without, BD canta: “New stars, old sky”. Novas estrelas num céu velho. É isso que tento trespassar com esta resenha. Porque acho que este Cd nunca recebeu a atenção que merece. Isto porque os clássicos normalmente não são grandes sucessos, mas são grandes em influenciar e mudar as pessoas. Podem modificar tendências deixando sua marca, embora não a sua assinatura.
Hate Your Friends é o início e Lick é o final. HYF é uma colagem de EP, mais LP mais o que sobrou no estúdio. Lick segue a mesma lógica, é música nova, com velha, mais regravação e cover. Creator é íntegro. Não existem outros músicos tocando além dos 4, Ben Deily, Evan Dando, Jesse Peretz e John Strohm.
Lovey? Lovey já é “The Lemonheads”, é Mercado, é Capitalista.
Creator? Creator é um kibbutz. É comunitário; saiu do esforço, suor e sangue de 4 pessoas esmerilhando seus instrumentos.
Creator é tudo o que a música precisa hoje e não sabe! Não importa o estilo, não importa se toca no rádio ou não (porque Creator não tocou), não importa se está na parada. O que importa é a força, a energia, a dedicação para fazer o melhor.
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