terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Ensaio sobre a Cegueira X A Peste





ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA:
# Editora: Companhia das Letras
# Autor: JOSE SARAMAGO
# Ano: 1995
# Edição: 23

A PESTE
# Editora: Record
# Autor: ALBERT CAMUS
# Ano: 1947
# Edição: 12

LIVROS SIAMESES (ou xifópagos, se preferir)

Assim como os Irmãos Corsos, gêmeos siameses são unidos por um elo de carne. Fisicamente os livros podem nascer grudados, assim como suas páginas ou capas. Mas nesta resenha, proponho demonstrar o elo espiritual entre esses dois maravilhosos romances que interpretam e devassam os limites da índole humana, quando esta se depara com o terrível.

Primeiramente o irmão gêmeo mais novo, O Ensaio Sobre a Cegueira.
Escrito após o polêmico Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), o livro conta a história de uma epidemia de “cegueira branca”, aonde as vítimas atingidas não veem como os cegos eventuais (imersos na escuridão), e sim, enxergam uma superfície leitosa alva, independentemente de ser dia ou noite.
A primeira vítima, assim como a gripe suína, não vê motivos para alarme, pensando tratar-se de nervos ou estresse. Porém, como um novo-cego, é trapaceado pelo primeiro que lhe oferece ajuda.
Um médico que começa a tratar diversas pessoas que o procuram com as mesmas reclamações, começa a desconfiar de uma epidemia de cegueira. Posteriormente esta se revelará uma pandemia, que se alastra aparentemente pelo ar, quando próximo de uma pessoa contaminada.
O médico acaba vítima da doença, assim como todos que estiveram próximo.
O governo ao deparar-se com a crise aumentando sem aparente solução, resolve isolar os doentes num manicômio adaptado. A mulher do médico sabendo da quarentena, resolve fingir-se de cega para acompanhar o marido.
No manicômio, todos os personagens que perderam as vistas no início do romance se reencontram. Apesar de culparem uns aos outros por sua moléstia, acabam por tentando adaptar-se à nova condição, completamente isolados do mundo exterior.
Como não nasceram cegos, são obrigados a desenvolver métodos canhestros para higienizarem-se, alimentarem-se e conviverem mutuamente.
Ocorre, que cada vez, mais e mais pessoas chegam ao local, e uma nova ordem precisa ser estabelecida sobre o caos de imundície que se instala, a disputa por comida e camas.
Enquanto as notícias do mundo externo não chegam, a superlotação começa a criar distúrbios internos e disputas de poder começam a ser organizadas.
A mulher do médico, como a única que podia ver, tenta dar cabo da situação, mas sua vontade sucumbe ante à horda de pessoas famintas e desesperadas. Passa então a aceitar sua situação e aos poucos vai perdendo a noção de civilidade e adentra as bestialidades humanas estabelecidas.
Aqui deixo de contar as histórias que se passaram dentro do isolamento, para não estragar as surpresas do livro. O filme não aborda muito a imundice e a animalidade (tanto sexual como comportamental) presentes, por isso, no papel é mais interessante comparado ao filme.
Mas posso contar aqui que uma das alas toma o poder por meio da força, subjugando as demais, racionando a comida e deflorando suas mulheres, perante a inércia e covardia dos homens.
Depois de suportar muito abuso, uma das cegas resolve dar uma basta à situação e põe fogo na ala dominante. Dessa forma, a mulher do médico, a única que via, compreende a natureza do seu papel e guia alguns do seu grupo para fora do hospício em chamas. Lá se depara com uma dura realidade: não havia guardas, não havia soldados, não havia ninguém.
Assim, a segunda parte do livro dá início, quando a única desanuviada tem de guiar todo o grupo de cegos, num mundo de cegos... Um mundo onde a condição humana reduziu-se à luta pelo alimento, e nenhuma das regras do status quo ante, serviriam nesta nova ordem. E assim, após a alma humana revelar-se o quão baixo era capaz de chegar, florescia o momento, o momento em que única mulher que podia ver deveria mostrar o que o coração dos homens podia dar de melhor, em termos de amparo ao socorro da escuridão branca e a fome que se alastrava.
Paro aqui para não estragar o clímax do romance, mas peço para repararem no momento em que entram na igreja e todas as figuras estão representadas à imagem do homem.

Agora trato o gêmeo mais velho, a peste, o livro que certamente inspirou Saramago a escrever o ensaio sobre a cegueira.
Todo o romance se passa na cidade de Oran na Argélia. Assim como no Ensaio, num belo dia, todos os ratos da cidade começam a morrer pelas ruas, varandas, fachadas, cafés e demais estabelecimentos. O ratos apresentam um estranho comportamento antes de sucumbirem, vomitam sangue.
O fato passa despercebido pelos concidadãos. Mas após algumas mortes, começa ficar claro que algo não está certo.
Com o aumento dos óbitos, as autoridades sanitárias ordenam o isolamento da cidade, tendo em vista tratar-se de um surto de peste bubônica.
Aos poucos, todos os personagens começam a aparecer...
Os principais são o jornalista Raymond Rambert, que quer a todo custo fugir da calamidade e O médico Dr. Bernard Rieux, que se vê obrigado a salvar vidas em meio ao desinteresse dele pela própria.
O paralelo das duas histórias concentra-se na mesquinhez da histeria. Todos os habitantes fecham-se para o mundo buscando uma ridícula proteção dentro dos seus lares. Neste primeiro momento, sobrepõe todos seus interesses egoísticos sobre a coletividade em geral. Todas as noções de solidariedade, urbanidade, altruísmo e humanitarismo são tão logo abandonadas.
Mas no decorrer das mortes e da iminência desta, o espírito humano aos poucos volta a refletir.

Destarte, as histórias, tanto de A Peste, como do Ensaio Sobre a Cegueira, são irmãs de carne e espírito. Ambas abordam o fim e o renascimento das cinzas daquilo que transformou a humanidade no que ela é: o permanente conflito entre nós com nossos pares e superação das diferenças em momentos penosos. Momentos em que nossas paixões e interesses pessoais morrem em prol da comunidade, colocando-nos, às vezes, nossa sobrevivência em segundo plano.

Por isso recomendo a leitura destes dois livros juntos. Primeiro o livro do Camus e segundamente de Saramago, pois um serve como abertura para o outro e também como complemento. O que um não apresenta o outro fornece e assim por diante.

Divirtam-se!

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