sábado, 27 de dezembro de 2008

Creator - Lemonheads




Muitos, assim como eu (que já foram geração emetevê), somente conheceram aquele Lemonheads que tocava a já manjadíssima Mrs. Robinson (do Paul Simon) ou "Into Your Arms" (Robyn St. Clare) lá pelos idos de 92, 93 e depois pra nunca mais se ouvir falar.

Bem, quando o Evan Dando passou pelo Brasil, eu estava assistindo o show do magnífico Pixies em Curitiba, por isso não deu tempo de vê-lo em São Paulo. Mas pelo que me falaram, não deixou saudade.

Um belo dia, resolvi adquirir aquela coletânea dos cabeças de limão (The Best of the Lemonheads: The Atlantic Years, 1998) e gostei muito do material off-mtv e off-radio. Assim, comecei a torrar uma grana com o restante da discografia.

Pesquisando pela internet (mais precisamente, na quadriloqüente[!] Wikipédia), descobri 3 discos que me faltavam para magnanimar-me indie: Hate Your Friends (87), Creator (88) & Lick (89).

Mas havia algo de estranho(!?), Lovey (90) diferentemente dos outros, já apresentava uma sonoridade um tanto anormal. A única cabeça conhecida fora o próprio ED, era o grande baterista David Ryan. Do resto, não conhecia ninguém!? Aliás, meu primeiro álbum, não foi a coletânea e, sim o “paralelo” Around. O Lovey continha algumas músicas que eu curtia no Around, mas só aquelas não tocadas ao vivo possuíam a tal ‘pegada’ anormal. Li'l Seed e (The) Door contiam frituras de guitarra muito distante do mundinho punk dos independentes. Aí eu fiquei conhecendo quem era T. Corey Brennan.
Mas tudo bem, não é deste disco que venho falar, voltemos aos três iniciais:
A novidade para mim, foi que, ao contrário do unilateralismo da figura do ED que eu estava acostumado, uma nova voz apareceu nestes álbuns. Alguém que até então eu ignorava. Descobri que o Lemonheads havia nascido dual, muito punk e extremamente mais criativo do que eu podia imaginar.

O Lemonheads nasceu em 1986 como The Whelps, formado por dois colegas de uma escola secundária em Boston (MA). O primeiro homem era o já conhecido Evan Dando, mas a novidade ficava pelo fato de haver também um segundo primeiro-homem: Ben Deily.
O engraçado disso tudo está no fato de que BD não era um bom cantor (hoje em dia já está melhor), não era o 2º guitarrista (até porque era o baterista) e não era o principal compositor. Mas, mesmo assim, havia algo de mágico no ar.
Comecei ouvindo o primeiro disco (Hate Your Friends), que nesta edição já incluía o primeiro EP (Laughing All the Way to the Cleaners, 86), com o baixista Jesse Peretz, que mais tarde se tornaria cineasta e diretor de vídeo-clipes (muitos inclusive do Foo Fighters). Algumas faixas ainda traziam o baterista Doug Trachten, mas este sumiu pela história.

Tudo o que eu posso dizer é que HYF é um prato-cheio para aqueles que cresceram ouvindo Bad Religion, Bad Brains, Ramones, Sex Pistols etc. O CD é mais puro e doce caldo punk e nada mais. Pois não espere nada com mais de 3 (3 minutos, 3 acordes, 3 refrões). ED e BD revezam nas composições, nos vocais, na bateria também. Tudo bem tosco e muito maravilhoso. Destaques para Glad I Don’t Know, Rabbit, Second Chance, Hate Your Friends, Ever e Sad Girl.

Porém, saindo da lógica natural, pulei o 2º CD (Creator) e fui direto pro 3º (Lick).
Lick é o que há de mais bizarro em toda a discografia. Teoricamente, o disco saiu à fórceps, mas saiu muito bom. São 5 inéditas (3 do ED e 2 do BD), 2 regravações e 2 takes do primeiro disco e um cover (Luka da Suzanne Vega).
O casting é quase o mesmo do HYF, com a diferença da entrada do Corey Loog Brennan na guitarra, fazendo as frituras à rock farofa e cantando em italiano (Cazzo di Ferro).
O saldo é positivo, mas depois desse Frankenstein, BD retirou-se da banda, prometendo processar o ED caso este cantasse alguma de suas músicas e descrevendo toda essa fase numa canção vingança (Blockout, cantada pelos Pods). PS: hoje em dia já está tudo bem entre eles. Destaques para: Mallo Cup, A Circle of One, Anyway & Luka.

Por último, pus Creator para tocar... Realmente esperava algo como uma continuação de HYF ou coisa que o valha, não sabia que daquele momento em diante, que este seria um dos meus CDs favoritos...

O Album
À primeira audição, sentia que este disco era especial. Como já havia dito, em tese, não haviam elementos extrínsecos que me levariam a acreditar que este era um dos melhores CDs da história. A capa não dizia nada, é bem sem graça. Na contra-capa a formação do primeiro disco, mas pelo menos com um baterista fixo (John Strohm, que tocava guitarra no Blake Babies e em outras da mesma cena).

Ao colocar o cd pra tocar no carro (comprei todos na galeria do rock pagando preços astronômicos) e o som da chuva e sinos entoavam o que eu estava para ouvir:

A primeira faixa, Burying Ground, é cantada pelo BD, bem como é também uma de suas composições. Na abertura é já possível reconhecer as sutilezas das músicas. Não mais o ritmo frenético do HYF, mas uma forma diferente de tocar, abafando as cordas, sussurrando as vozes e alterando a velocidade da canção várias vezes. É até um tanto sofisticado demais para uma banda até então “punk”. Mesmo a letra é diferente e aqui mais especificadamente encontramos uma estrofe de Emily Dickinson: "This is the Hour of Lead -- Remembered, if outlived, As Freezing persons, recollect the Snow -- First -- Chill -- then Stupor -- then the letting go --".
Como um degustador, este primeiro prato era o suficiente para minha inteira satisfação, mas havia mais...

Sunday é a segunda música do BD em Creator. Já mais no espírito pesado, encontramos aqui (bem de fundo, é claro) teclados (!!!)

Assim, quase sem pausa para respirar nos deparamos com a primeira canção do ED no disco (Clang, Bang, Clang, mais tarde regravada em Lovey com o nome Left For Dead). O ponto forte da música é a versatilidade e a rapidez do John Strohm como baterista de um disco só. É impressionante o domínio do instrumento que até então não era sua especialidade. A forma de utilizar os pratos ao invés da caixa destoa muito de toda a discografia do Lemonheads. É uma bela música para abrir um show.

Seguindo a porradaria, Out, pesada mas com uma pegada mais lenta, é a segunda música do ED no disco. Um excerto: “Digging deeper in the sand / Now the water comes up / Cut my finger on the years oh, years oh What can you do? / I'll remember you / He waits for you behind the years oh, years oh Let it go” e podemos nos deparar com um certo lirismo, um subjetivismo poético que começava a germinar aqui mas adquirirá a maturidade plena em It's A Shame About Ray (1992).

A quinta faixa (Your home is where you’re happy) é uma surpresa! Trata-se de uma balada escrita pelo Charles Manson (é, aquele da família insana que matou a atriz Sharon Tate). Parece que nesta época ED viajava pelo campo do satanismo e cultuava o tal Manson (que também foi regravado pelo Guns n’ Roses etc). A priori é uma baladinha bem inocente: Your home is where you’re happy / It’s not where you’re not free / Your home is where you can be what you are / As you were just born to be. Perfeito para um lobo em pele de cordeiro.

Falling, do BD, talvez seja a única música que realmente demonstre estarem ele e ED no mesmo disco. É aparente que estão sendo tocadas duas guitarras, pois até então pareciam duas bandas diferentes tocando no mesmo cd. Falling é rápida, suja e eficiente.

Em seguida já entra Die Right Now, a última música do ED no disco e talvez a sua melhor contribuição até aqui. Mais violenta do que média das suas composições, aqui o próprio não para de urrar Time!!! no refrão enquanto rola uma locução de fundo e depois um solo maravilhoso. Ficou pra história.

E dessa forma, na oitava faixa, o BD retorna quebrando o andamento distorcido de Creator com Two weeks in another town, cuja letra tem tom mais bucólico (e talvez seja o divisor de águas do álbum). A partir daqui quase todo o disco é seu, e foi aí que me surpreendi, pois este era o único cd em toda carreira do Lemonheads que não foi inteiramente escrito pelo Evan Dando, assim como não é ele quem conduz a batuta. É maravilhoso!

A nona faixa deveria ser a regravação de Luka (que posteriormente aparecerá em Lick); mas ao invés disso, a banda resolveu colocar um(a) cover do Kiss, Plaster Caster, que é bem engraçadinha e quebra toda a tensão que as músicas carregam. Cynthia Plaster Caster foi uma famosa groupie que fazia moldes de gesso dos pênis de suas conquistas (Morrisson, Hendrix, Gene Simmons [daí a “homenagem”]).

A décima canção Come to The Window traz um novo elemento que se tornaria o principal instrumento do grupo a partir de 1992: o violão. Não que a música seja uma balada, longe disso! Ainda há a crueza e a distorção das guitarras, todavia, tudo fica mais encorpado, mais melódico. Come to the Window é o exórdio do futuro som dos cabeças de limão iriam começar a fazer.

Em seguida, uma locução do filme Blade Runner anuncia a próxima faixa Take Her Down, que recupera a pegada enérgica das duas primeiras canções. A letra, como toda boa letra, deve ser tão pesada quanto sua música: Collector knows, forever lie /Acid in your throat, don't cry. Da mesma forma é mais elevada do que a media: “Fire on the ocean go / Sun is sinking far below / Glowing cold but always gone / Numb and flashing off and on / Dying in your heart…”. Nada como letristas literalmente “letrados”. Ben Deily é graduado em literatura na Universidade de Harvard desde 1994.

Postcard, a penúltima, à primeira vista, não morri de amores por ela. Parece-me que nem o Jesse Peretz gostou à época. Posteriori, comecei a apreciá-la e entender sua mensagem. Aqui sim, uma balada só ao violão e levemente teclados ao fundo. Hodiernamente esta letra seria considerada “Emo”.

E por fim, para encerrar este majestoso disco, a maravilhosa Live Without. A voz do BD não permite maiores escândalos, mas, mesmo assim, é possível ver que ele dá o sangue neste música. E é isto que faz a diferença, o sangue dado neste disco que quase matou a banda na turnê para divulgá-lo. Live Without é também a última faceta do JS como baterista e outrossim, mais uma vez abusa dos pratos no acompanhamento. A melodia segue a mesma orientação do lado B do LP, mas o diferencial aqui é o frescor, a ardência, a juventude, a garra que os 4 cavaleiros depositaram em Creator. Realmente a emoção e a qualidade das canções é ímpar, sendo Live without seu posfácio.

Dentro do encarte há uma foto da banda, na frente de uma tumba onde há o nome dos integrantes e o nome do disco Creator como epitáfio. Essa fotografia não carece de extensa interpretação, até porque é explicável de per si. O “Lemonheads” morreu neste disco, para posteriormente nascer como o “The Lemonheads”. À primeira vista não existe diferença alguma, mas há!

Posso até estar sendo redundante, mas o que há de mais belo em Creator é a sua força ingênua e juvenil. Uma banda que ainda não precisava cair nas armadilhas do mercado. Não precisava se dobrar para gravadoras ou fãs, tanto é que Luka sugerida pelo empresário foi recusada e substituída por Plaster Caster. Aqui somente entrou aquilo que a banda queria tocar e da forma como gostaria de tocar. Ainda assim, também é primoroso porque é disfuncional. São dois conjuntos no mesmo disco (um Split-cd), são ‘Lemonheads’ e ‘The Lemonheads’ tentando ocupar no mesmo espaço. Com o tempo o segundo engoliu o primeiro, mas para mim o primeiro deixou mais saudade. O segundo está por aí, periclitando, lançando um disco de covers, cometendo auto-plágios. Não que eu não tenha gostado dos últimos lançamentos, contudo tenho a sensação do “já ouvi isso antes”, como se fosse comida requentada.

Numa parte de Live without, BD canta: “New stars, old sky”. Novas estrelas num céu velho. É isso que tento trespassar com esta resenha. Porque acho que este Cd nunca recebeu a atenção que merece. Isto porque os clássicos normalmente não são grandes sucessos, mas são grandes em influenciar e mudar as pessoas. Podem modificar tendências deixando sua marca, embora não a sua assinatura.

Hate Your Friends é o início e Lick é o final. HYF é uma colagem de EP, mais LP mais o que sobrou no estúdio. Lick segue a mesma lógica, é música nova, com velha, mais regravação e cover. Creator é íntegro. Não existem outros músicos tocando além dos 4, Ben Deily, Evan Dando, Jesse Peretz e John Strohm.

Lovey? Lovey já é “The Lemonheads”, é Mercado, é Capitalista.
Creator? Creator é um kibbutz. É comunitário; saiu do esforço, suor e sangue de 4 pessoas esmerilhando seus instrumentos.

Creator é tudo o que a música precisa hoje e não sabe! Não importa o estilo, não importa se toca no rádio ou não (porque Creator não tocou), não importa se está na parada. O que importa é a força, a energia, a dedicação para fazer o melhor.

Creator é Do yourself. Creator diz: -Saia debaixo das asas da mamãe e do papai e faça você mesmo! Seja criativo, seja criador...

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Ensaio sobre a Cegueira X A Peste





ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA:
# Editora: Companhia das Letras
# Autor: JOSE SARAMAGO
# Ano: 1995
# Edição: 23

A PESTE
# Editora: Record
# Autor: ALBERT CAMUS
# Ano: 1947
# Edição: 12

LIVROS SIAMESES (ou xifópagos, se preferir)

Assim como os Irmãos Corsos, gêmeos siameses são unidos por um elo de carne. Fisicamente os livros podem nascer grudados, assim como suas páginas ou capas. Mas nesta resenha, proponho demonstrar o elo espiritual entre esses dois maravilhosos romances que interpretam e devassam os limites da índole humana, quando esta se depara com o terrível.

Primeiramente o irmão gêmeo mais novo, O Ensaio Sobre a Cegueira.
Escrito após o polêmico Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), o livro conta a história de uma epidemia de “cegueira branca”, aonde as vítimas atingidas não veem como os cegos eventuais (imersos na escuridão), e sim, enxergam uma superfície leitosa alva, independentemente de ser dia ou noite.
A primeira vítima, assim como a gripe suína, não vê motivos para alarme, pensando tratar-se de nervos ou estresse. Porém, como um novo-cego, é trapaceado pelo primeiro que lhe oferece ajuda.
Um médico que começa a tratar diversas pessoas que o procuram com as mesmas reclamações, começa a desconfiar de uma epidemia de cegueira. Posteriormente esta se revelará uma pandemia, que se alastra aparentemente pelo ar, quando próximo de uma pessoa contaminada.
O médico acaba vítima da doença, assim como todos que estiveram próximo.
O governo ao deparar-se com a crise aumentando sem aparente solução, resolve isolar os doentes num manicômio adaptado. A mulher do médico sabendo da quarentena, resolve fingir-se de cega para acompanhar o marido.
No manicômio, todos os personagens que perderam as vistas no início do romance se reencontram. Apesar de culparem uns aos outros por sua moléstia, acabam por tentando adaptar-se à nova condição, completamente isolados do mundo exterior.
Como não nasceram cegos, são obrigados a desenvolver métodos canhestros para higienizarem-se, alimentarem-se e conviverem mutuamente.
Ocorre, que cada vez, mais e mais pessoas chegam ao local, e uma nova ordem precisa ser estabelecida sobre o caos de imundície que se instala, a disputa por comida e camas.
Enquanto as notícias do mundo externo não chegam, a superlotação começa a criar distúrbios internos e disputas de poder começam a ser organizadas.
A mulher do médico, como a única que podia ver, tenta dar cabo da situação, mas sua vontade sucumbe ante à horda de pessoas famintas e desesperadas. Passa então a aceitar sua situação e aos poucos vai perdendo a noção de civilidade e adentra as bestialidades humanas estabelecidas.
Aqui deixo de contar as histórias que se passaram dentro do isolamento, para não estragar as surpresas do livro. O filme não aborda muito a imundice e a animalidade (tanto sexual como comportamental) presentes, por isso, no papel é mais interessante comparado ao filme.
Mas posso contar aqui que uma das alas toma o poder por meio da força, subjugando as demais, racionando a comida e deflorando suas mulheres, perante a inércia e covardia dos homens.
Depois de suportar muito abuso, uma das cegas resolve dar uma basta à situação e põe fogo na ala dominante. Dessa forma, a mulher do médico, a única que via, compreende a natureza do seu papel e guia alguns do seu grupo para fora do hospício em chamas. Lá se depara com uma dura realidade: não havia guardas, não havia soldados, não havia ninguém.
Assim, a segunda parte do livro dá início, quando a única desanuviada tem de guiar todo o grupo de cegos, num mundo de cegos... Um mundo onde a condição humana reduziu-se à luta pelo alimento, e nenhuma das regras do status quo ante, serviriam nesta nova ordem. E assim, após a alma humana revelar-se o quão baixo era capaz de chegar, florescia o momento, o momento em que única mulher que podia ver deveria mostrar o que o coração dos homens podia dar de melhor, em termos de amparo ao socorro da escuridão branca e a fome que se alastrava.
Paro aqui para não estragar o clímax do romance, mas peço para repararem no momento em que entram na igreja e todas as figuras estão representadas à imagem do homem.

Agora trato o gêmeo mais velho, a peste, o livro que certamente inspirou Saramago a escrever o ensaio sobre a cegueira.
Todo o romance se passa na cidade de Oran na Argélia. Assim como no Ensaio, num belo dia, todos os ratos da cidade começam a morrer pelas ruas, varandas, fachadas, cafés e demais estabelecimentos. O ratos apresentam um estranho comportamento antes de sucumbirem, vomitam sangue.
O fato passa despercebido pelos concidadãos. Mas após algumas mortes, começa ficar claro que algo não está certo.
Com o aumento dos óbitos, as autoridades sanitárias ordenam o isolamento da cidade, tendo em vista tratar-se de um surto de peste bubônica.
Aos poucos, todos os personagens começam a aparecer...
Os principais são o jornalista Raymond Rambert, que quer a todo custo fugir da calamidade e O médico Dr. Bernard Rieux, que se vê obrigado a salvar vidas em meio ao desinteresse dele pela própria.
O paralelo das duas histórias concentra-se na mesquinhez da histeria. Todos os habitantes fecham-se para o mundo buscando uma ridícula proteção dentro dos seus lares. Neste primeiro momento, sobrepõe todos seus interesses egoísticos sobre a coletividade em geral. Todas as noções de solidariedade, urbanidade, altruísmo e humanitarismo são tão logo abandonadas.
Mas no decorrer das mortes e da iminência desta, o espírito humano aos poucos volta a refletir.

Destarte, as histórias, tanto de A Peste, como do Ensaio Sobre a Cegueira, são irmãs de carne e espírito. Ambas abordam o fim e o renascimento das cinzas daquilo que transformou a humanidade no que ela é: o permanente conflito entre nós com nossos pares e superação das diferenças em momentos penosos. Momentos em que nossas paixões e interesses pessoais morrem em prol da comunidade, colocando-nos, às vezes, nossa sobrevivência em segundo plano.

Por isso recomendo a leitura destes dois livros juntos. Primeiro o livro do Camus e segundamente de Saramago, pois um serve como abertura para o outro e também como complemento. O que um não apresenta o outro fornece e assim por diante.

Divirtam-se!

sábado, 20 de dezembro de 2008

EVANGELHO DE TOME, O

Tradutor: LELOUP, JEAN-YVES

Editora: VOZES, 10ª edição (2006)


Uma bizarra curiosidade levou-me até este livro. Após a euforia “código da vinciana”, acabei encontrando-o quase por acaso numa livraria do centro de São Paulo. Mesmo o vendedor tentando empurra-me os outros evangelhos (“melhores”), criei uma profunda estima por este aqui.

Diferentemente do conceito “evangelho” ordinariamente conhecido por nós, este livro é uma em versão completa dum manuscrito copta encontrado em Nag Hammadi, que ao invés de contar histórias ou explicitar doutrinas, apenas lista de 114 ditos (ou logions) atribuídos a Jesus.

A Wikipédia pode detalhar melhor os detalhes arqueológicos e históricos dos evangelhos apócrifos.

A novidade que me simpatizou está no fato de que aqui, oposto às doutrinas oficiais “Canônicas”, este testamento “Herético” remete a recomendação de Jesus para que ninguém faça aquilo que não deseja ou não gosta e a ênfase não está na fé, mas a descoberta de si mesmo. Conhece a ti mesmo (Nietzsche, gnôthi seautón / genói hoios essí), pois é lá aonde está o verdadeiro reino, não acima, nem abaixo, mas dentro de nós.

O ineditismo foi chocante pra mim. Até agora não consegui digeri-lo por completo.

Sendo que outra surpresa, foi a inutilidade de intermediários para se conversar com o Próprio Deus. Pois este está em qualquer lugar, sendo também desnecessários prédios de pau e pedra.

Com certeza deve incomodar mundos e fundos, pois todas as instituições religiosas certamente ruiriam com esta máxima, como um dominó:

-Se não precisas de um templo, não precisas dum pastor, se não precisas de um pastor, não necessitarás de dar dízimos... e por aí vai. Não é à toa que foi proibido por muitos séculos.

Devo admitir, ler o evangelho secamente é uma aventura e tanto, já que o texto tem sua complexidade. Por isso recomento este livro, que fornece alguns comentários sobre os logions, tornando a leitura mais agradável e as idéias implícitas mais compreensíveis.

É revelador, É incitante. Tem todas as características para mudar o pensamento de qualquer um.

Altamente recomendado.




sábado, 16 de agosto de 2008


Discos que podem mudar nossas vidas – Miles Davis Doo-Bop 1992.

Às vezes é impossível imaginar um artista que jamais tenha caído em algum tipo de decadência. Miles Davis não foge à exceção. Passou por quase todo tipo de declínio (físico, moral, financeiro...), exceto um! Exceto o mais importante: o artístico. Alguns podem me chamar de idólatra, mas não poderão dizer que estou errado. Miles Davis jamais lançou um disco ruim. O disco supramencionado até pode ser desconfortável para alguns, como também pode ser genial à pessoa ao seu lado. Não haverá unanimidade. E, aqui estou eu... para elogiar, ressaltar, exaltar, enaltecer, glorificar e por fim, louvar:

DOO-BOP, o disco que mudou minha vida.

Jazz praticamente não existia pra mim antes desse disco. Tudo era muito nebuloso, velho, teórico e chato. Mas não esse, não esse disco. Num dia aonde tudo já havia sido escutado, somente este CD restava no porta-luvas. Sem muito ânimo, coloquei-o. Daí em diante todo dia foi o dia mais importante. Tudo começou a fazer sentido, jazz não era mais chato, mas era desafiante; os improvisos, o sarcasmo, a despreocupação e a liberdade... ah liberdade! Finalmente havia entendido o jazz, jazz era livre!! Estava diante dos meus olhos, mas eu não enxergava. A partir daí, tudo virou jazz.

Miles, ao final da vida queria modernizar o seu som. O jazz há muito não reinava e nada era reinventado. Após ter perdido os anos 80 em sintetizadores e teclados, Davis juntou forças com um jovem produtor de hip-hop e começaram a trabalhar os sons das ruas. O som do baixo acústico passou a ser realizado por loops, a batida por samplers e pela primeira vez o jazz tocava o eletrônico e vice-versa. Mas o elemento humano, o trompete, o improviso, o calor e a liberdade estavam lá. Havia voz também para civilizar a selvageria das ruas, seus barulhos, seus incômodos... mas o trompete, o último trompete foi incrível. Miles estava velho, mas seu som era novo, as músicas eram novas, nada de releituras ou interpretações, mas somente as originais. Para mim, o melhor momento, pois havia o fogo da juventude, a ingenuidade, mas com uma clareza e o amadurecimento que só a idade poderiam lhe trazer.

Não comentaria as músicas, pois isso estragaria a epifania, mas como epílogo informo desde já de que o álbum é póstumo. Davis morreu durante a feitura (essa palavra existe, tá!) do disco. Duas músicas foram concluídas postumamente e há uma reprise também. Mas nada que macule esta grandiosa pequena obra de reinvenção.

Parte do jazz morreu junto com Miles Davis. Mas para onde ele seria levado caso tivesse vivido um pouquinho mais? Ou talvez o jazz ainda esteja aí, esperando o seu momento para ressurgir, com outros heróis, outros instrumentos e outras almas...

No epitáfio: Aqui M.D. jaz, aqui há jazz.



escrito por Calibam

postado por Ren

domingo, 20 de julho de 2008

Estava lá para quem quisesse ver.


Esta semana saiu no Estadão (1º Caderno, A22, 20/07/08) uma reportagem do fotógrafo sobra da morte do soldado que fotografou socorrendo uma criança iraquiana intitulado:

Minha foto deu fama ao soldado Dwyer. Teria influenciado em sua morte?

O soldado Dwyer, após 5 anos em luta no Iraque, retorna aos Estados Unidos. Incapaz de superar PTSD (distúrbio de stress pós-traumático), acaba suicidando-se. Independente dos fatos narrados pelo fotógrafo Warren Zinn, que fez uma retrospectiva de seu contato com o menino ferido (Ali Sattar) e com o próprio Dwyer após a foto ter-se tornado mundialmente reconhecida, cabe apenas nesse espaço, não indagar-nos sobre o porquê, mas recordarmos do quanto o horror nos toma em humanidade.

Nada do que já não tenhamos visto nos filmes (apocalipse now), nos livros (no coração das trevas) ou na vida (PCC, CV), o horror nos macula por dentro a tal ponto que mesmo fora desta zona de medo, o medo e os pesadelos continuam entranhados como parasitas na psique.

É importante indagar o quão perigoso será a vindoura geração, quando traz no DNA o terror. Pois a corrosão interna corporis está para todos nós independente da nossa nacionalidade. Está em todos os lugares, assim como as armas para atirarmos em fantasmas, mais potentes, destruidoras.

É preciso ensinar aos nossos filhos algo diferente da devastação em meio ao tiroteio. Muros, grades, seguranças e cães nada podem contra aquilo que é intangível. A defesa material contra ataques físicos é possível, mas nada contra a barbárie invisível que nos adentra pelos olhos, soam aos ouvidos e exalados tomam-nos os olfatos. Esse mal, uma vez comendo lhe a carne, volta contra si mesmo e/ou todos dentro da sua ilha de segurança.

Independente de filosofia ou credo, é preciso combater, é preciso ensinar e é preciso recuperar a geração, sob pena do canibalismo social, que facilmente passa pelas fronteiras e defesas armadas.

Não venho aqui para pregar o apocalipse, mas é preciso cobrar responsabilidade... e é preciso responsabilizar-ser também.

domingo, 6 de julho de 2008


Interpretatio facienda contra eum qui clarius loqui potuisset ac debuisset”

Porventura você já atirou a primeira pedra?

Já contestou um axioma?

Mentiu para contar a verdade?

Bem, eu já.

Uma vez Jimi Hendrix cantou: “are you experienced? / Have you ever been experienced? / Well, I have”.

SARTRE, Jean-Paul (1905-1980). As Moscas. ed. Nova Fronteira / 2005.

Sobre este livro, é notório que Sartre o escrevera concomitantemente à sua principal obra filosófica -O Ser & o Nada-, ambos de 1943. Seu pensamento foi muito difundido à época devido à moda existencialista que seguiu-se aos seus trabalhos publicados, acrescido ao fato de ter-se tornado também um famoso romancista e teatrólogo. Sobre Sartre, basta uma rápida pesquisa na Wikipedia (www.wikipedia.org) para situar-se no contexto deste livro.


Ainda no início da 2ª Guerra Mundial, mais propriamente em 1940, a França é invadida pela Alemanha Nazista. Ainda traumatizada pelos estragos da 1ª Guerra, assina um armistício com seu algoz, buscando um “mal-menor” e evitando assim a destruição imediata do país. Dessa forma, a França é imediatamente divida em duas, sendo instalado em Vichy a sua nova capital, passando-se o comando para o antigo herói da 1ª Guerra, o General Phillipe Pétian.


Buscando a reconstrução nacional, a França agora não passava de uma “colônia” que servia aos interesses de Hitler e seus asseclas. Em frangalhos, não restava ao estado gaulês qualquer saída a não ser a auto-penitência, colaboração e degradante subordinação, pois ao menor sinal de resistência seriam rapidamente dizimados pelo Estado Alemão.


Passados três anos sob ocupação alemã, o colaboracionismo de Vichy não presentava sinais de recompensa pela auto-humilhação francesa perante o 3º Reich, pior, o estado nazista parecia regozijar ainda mais com a penúria de seus cativos. O sadismo alemão já há muito superava o masoquismo francês, sugavam até não poder mais o país, saqueando, torturando e executando o que e quem bem quisessem.


E é sobre essa plataforma histórica que se localiza “As Moscas”. No auge da submissão do governo Vichy, Sartre apropria-se da obra do poeta trágico grego Ésquilo (Agamemnon), para rescrevê-lo à sua maneira. A história original conta que depois de dez anos, Agamenon volta da Guerra de Tróia vitorioso, trazendo ricos despojos, a grande motivação da campanha. Clitemnestra prepara recepção calorosa para seu marido, mas como já havia planejado com seu amante Egisto, mata Agamemnon e a vidente Cassandra, vinda de Tróia, vingando a filha Ifigênia, sacrificada pela vitória na guerra.


Na obra em tela, Orestes voltando para casa junto com seu tutor, vê sua cidade natal recoberta de moscas, simbolizando a culpa pela aquiescência em relação ao assassinato de seu pai. O povo é manipulado por Egisto e Zeus, numa farsa religiosa que envolve "a volta dos mortos.' A população ao invés de erguer-se contra seus líderes, prefere expiar seus pecados publicamente por não terem avisado seu falecido rei da traição da rainha. Zeus para garantir a catálise da culpa, investe contra a cidade um enxame de moscas sedentas de sangue, que torturam os habitantes tanto física quanto psicologicamente.


Na caricatura sartriana, os habitantes de Argos são os franceses; Egisto, o amante da rainha, homicida do rei e consecutivamente o usurpador do trono é a Alemanha Nazista; Clitemnestra, a rainha, a traidora colaboracionista e partícipe da farsa dos mortos é a França de Vichy, consecutivamente Pétain; Júpiter, é a representação religiosa, o braço católico que deu suporte ao governo entreguista; Orestes, filho que voltou para vingar o pai, é a resistência e Electra, a filha de Agamemnon que vive no palácio e sonha com a desforra do pai, aqui poderia encaixar-se como aqueles que sonhavam com a luta, mas pela covardia, nada faziam.


A peça “As Moscas”, em resumo, exortava à luta violenta contra os usurpadores e contra o conformismo de parte da população.


Este livro/teatro é, outrossim, uma ponte para seu tratado mais importante: O Ser & o Nada, que sintetizava o existencialismo sartriano, delineando as influências de Husserl, Heidegger, Jaspers e Scheler e ainda pela longa manus de Kierkegaard. Portanto, seu existencialismo, na concepção filosófica, é uma moral da ação porque considera que a única coisa que define o homem é seu ato. Ato livre por excelência, mesmo que o homem sempre esteja situado em determinado tempo ou lugar, não importando que as circunstâncias fazem dele, mas sim o que ele faz do que fizeram dele.


Aqui, Orestes, simbolizando o “resistente”, o homem comum que ‘se escolhe herói’, desafiando os vínculos mais ‘sacrossantos’ com a ordem estabelecida, sendo impulsionado à ação por um inconformismo juvenil a aprender com sua irmã Electra, embora ele própria esteja ainda presa nas armadilhas de um sentimento apenas passivo, de ódio estéril e vulnerável (texto apresentação de Caio Liudvik), servem de alicerce para exemplificar sua teoria. Em dado momento, Zeus confessa a Egisto, o usurpador:


...O doloroso segredo dos deuses e dos reis: é que os homens são livres...”


...uma vez que a liberdade explodiu na alma de um homem, os deuses nada podem contra ele...”


Essa é a chave do existencialismo, bem como é a chave do livro. Infelizmente não posso ir além, pois se fosse estragaria o gran finale. Deixo um pouco de lado o conteúdo da mise-en-scène, recepção e críticas, pois isso tudo você poderá encontrar na apresentação do livro.


Por fim e sem mais delongas, você DEVE ler esse livro, tanto pela história empolgante, engraçada, trágica, como também pelo enredo e final espetaculares. Soma-se ainda o fato de tratar-se de um livro sobre todos nós. Sobre o destino das nossas escolhas, sobre essas escolhas que fazemos como pessoas livres e sem a intervenção de deuses ou de presidentes.


A leitura é leve (e até um pouco rápida demais), contrastando com o prolixo O Ser & O Nada. Mas se mesmo assim palavras como: existencialismo e ontologia fenomenológica te assustem um pouco, fique tranqüilo, esta peça foi justamente elaborada para àqueles que não querem enveredar por um caminho excessivamente teórico-filosófico-enfadonho (não são nem 100 páginas e ainda por cima está no formato de diálogos. [a tradução é excelente!]). Na verdade, você vai se divertir muito.


BOA LEITURA


PS: E para o bem ou para o mal, é preciso saber estar só, les chemins de la liberté germinarão em ti após esta leitura, pois este livro/peça aproveita uma época apolítica da vida de Sartre e por muitos é considerado seu ápice criativo.


PPS: Embora os “esquerdóides” tentem ao máximo apagar Albert Camus da biografia de Sartre & Beauvoir, é impossível deixar de citá-lo. Pois a amizade Camus & Sartre teve o seu pontapé bem aqui, no ensaio para a peça “Les Mouches”, depois disso eles nunca mais foram os mesmos.

______________________________

Eu experimentei e você?


Brandemburgo - Henry Porter



O perfil de quem vai gostar com certeza deste livro são pessoas que curtem história. O livro em questão (Brandemburgo), é um romance policial com toques de suspense, aventura, emotividade, e até amor, e narração de fatos verídicos que ocorreram entre julho e novembro de 1989 na Alemanha Oriental. Apesar do autor da obra ser um renomado jornalista inglês (Henry Porter), o personagem central da trama é um espião desiludido de meia-idade da polícia secreta alemã oriental : a “Stasi”. O livro merece ser lido pois seu enredo é envolvente, ele não cai no “pieguismo” dos best-sellers, e nem mesmo tenta ser pretensioso e revelador; ele apenas narra uma história de um cidadão que teve o azar de nascer numa ditadura comunista na qual a delação de traidores da pátria é um ato corriqueiro e a tortura, assassinato e lavagem cerebral são praticados constantemente pela Stasi, sem que a população possa fazer nada contra.

Porém o nosso “herói” Rudolf Rosenharte felizmente é dotado de extrema inteligência e coragem, e após cair em várias ciladas, tramas e conspirações envolvendo a KGB, a CIA, o MI-5 da Inglaterra e a própria Stasi, vai a luta para salvar seus entes queridos da morte certa, pois por razões que não posso explicar aqui, ele passa de agente do estado a pária político. E em um estado que uma em cada sete pessoas são informantes secretos, e cuja polícia política tem mais de cem mil membros, ele terá de negociar e barganhar muito para se manter vivo, e com esperanças de escapar a salvo para o Ocidente com seu irmão, cunhada e sobrinhos.

O clímax da história se dá no momento em que começa a haver uma corrida contra o tempo para tirar seu irmão das sessões de tortura e interrogatório no quartel general da Stasi, ao mesmo tempo em que começam a pipocar movimentos contrários ao regime por todo o país que culminarão, como a realidade nos mostrou há vinte anos, na queda do muro de Berlim.

Destaco como pontos positivos a precisão histórica dos eventos, a inclusão de alguns personagens reais na história (principalmente os de mais alto escalão), e a abordagem de um tema raro na literatura e história, que é a guerra fria pelo ponto de vista de cidadãos da República Democrática Alemã, mais conhecida como Alemanha Oriental.

Com exceção de filmes como Adeus Lênin, O Túnel e A Vida dos Outros, a arte escrita e filmada relacionada à Alemanha concentra-se demais nos temas do Nazismo e Segunda Guerra Mundial, que são assuntos já discutidos em demasia, principalmente do ponto de vista Norte-Americano. Portanto vale a pena esta leitura, não só pelo divertimento, mas pelo aprendizado de como era a vida naquele mundo polarizado e maniqueísta da Guerra Fria, do lado de lá da “Cortina de Ferro”.

sábado, 28 de junho de 2008




Esta será o primeiro livro a ser comentado. Aguardem.